TransplantAR realizou 54 transportes de orgãos em menos de um ano

Nesta semana, um paciente do Incor (São Paulo) poderia ter perdido a chance de receber um transplante de coração - o doador, uma criança, estava em Araçatuba, cidade que, por terra, fica a mais de cinco horas de distância, e o órgão que o receptor precisava não pode ficar mais do que quatro horas sem receber corrente sanguínea e oxigênio.
Graças à aviação, no entanto, a cirurgia pôde acontecer, ainda que em uma corrida contra o tempo. Neste caso em específico, o avião utilizado no transporte é de uma empresa privada, pelo programa TransplantAR, uma iniciativa da Secretaria de Estado da Saúde que vem salvando vidas com o apoio do Instituto Brasileiro de Aviação (IBA) e da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Mais do que as doações, sem as quais não existiram os transplantes, o sistema precisa de apoio para que as cirurgias aconteçam. Profissionais capacitados, estrutura e, claro, logística para evitar que os órgãos se percam por não dar tempo de chegarem até os receptores.
Essa logística está sendo aprimorada pela iniciativa estadual com o apoio das empresas. Pelo TransplantAR, de outubro de 2024 até 13 de agosto deste ano foram realizados 54 voos, sendo 30 em helicópteros, 11 em aviões turbo-hélice e 13 em aviões a jato. Isso significa que mais de cinco dezenas de vida foram renovadas: 40 corações, 11 pulmões, oito fígados e um pâncreas. Dentre os corações, foram oito pediátricos, de crianças de 7 meses até 14 anos de vida.
Até o momento, 16 cidades paulistas estiveram incluídas, dentre elas Rio Preto. Os aviões foram utilizados inclusive para transplantar órgãos dentro da própria capital, uma vez que dentro da metrópole o trajeto pode demorar mais do que quatro horas.
Outros dados impressionam: foram feitos voos para até 2 mil quilômetros de distância para outros estados, como Goiânia, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Tocantins. A distância percorrida até agora foi de 29 mil quilômetros, com um total de recursos de R$ 1,7 milhão, além de R$ 280 mil gastos com combustível.
A ideia
Entre os responsáveis pela idealização do TransplantAR estão o comandante Francisco Lyra, presidente do Instituto Brasileiro de Aviação (IBA), Eudes Quintino de Oliveira Júnior, chefe de gabinete da Secretaria de Estado da Saúde e Ronaldo Honorato Alves, médico cardiologista e transplantador.
Lyra conta que a ideia para o programa veio durante uma conversa com um consultor empresarial que tinha 9 anos de idade - isso porque ele reiniciou a contagem do tempo de vida após receber um transplante que se tornou necessário por causa de um câncer de fígado. Desde então, o homem fazia de seu trabalho um aliado do Sistema Nacional de Transplantes (SNT).
Sistema este que precisa de colaboração da sociedade civil para continuar existindo como um dos melhores do mundo. “É uma verdadeira operação de guerra. Não envolve só o voo, mas tem o transporte terrestre”, descreve Lyra. Segundo ele, é uma alegria imensa estar na linha de frente dessas operações. “A sensação é de dever cumprido.”
Eudes Quintino destaca que a iniciativa não impactou somente os receptores e suas famílias, mas também quem perdeu alguém amado e decidiu doar seus órgãos. “As famílias dos doadores tiveram a perda de seus entes queridos ressignificada”, defende.
O promotor aposentado garante que a iniciativa impactou direta e indiretamente pacientes que estavam listados para transplante e que estão sendo seguidas todas as normas de priorização e regras do SNT, do Ministério da Saúde.
“Foram transplantados receptores de todas as faixas etárias, de todos os órgãos captados, sempre obedecendo listagens fornecidas pelas Centrais Estaduais de Transplantes, em todo o Brasil, sintonizadas com o SNT”, explica Quintino.
Aceitação
Tão importante quanto a doação, o “sim” das famílias, é fazer com que o transplante possa acontecer. “Quanto menor o tempo de isquemia, maior a taxa de sucesso, menor tempo de internação e custo aos cofres públicos, além de maior tempo de sobrevida do órgão e do paciente. Agilidade no transporte é traduzido em anos adicionados de vida com qualidade”, destaca Ida Maria Maximina Fernandes Charpiot, nefrologista da Unidade de Transplante Renal do HB.
Os empresários voluntários são chamados para fornecer o avião conforme uma listagem. “Existe uma adequação entre o tipo de aeronave e o tipo da missão. Não existe priorização. Quem tiver disponibilidade, oferece,” diz Lyra.
Se um não pode, o outro é acionado. Em dezembro do ano passado, a equipe entrou em contato com um empresário cujo avião estava sendo utilizado em uma viagem no exterior com a família dele. O homem pediu um tempo e em seguida ligou informando que havia fretado um avião para buscar órgãos em outro estado.
“Expliquei a ele que não precisava, mas ele rebateu que estava próximo do Natal e que estava satisfeito em poder ajudar”, conta Quintino. “Há, sem dúvida, pessoas de bom coração e com a sensibilidade aguçada.
Mais voos, mais vida
João Fernando Picollo, coordenador da Organização de Procura de Órgãos (OPO) do Hospital de Base, responsável por toda a região, destaca que com o TransplantAR o aproveitamento de órgãos aumentou.
“O número de corações utilizados em 2024 já foi superado neste ano, assim como o de pulmões. Este apoio está sendo fundamental para que a gente consiga cumprir nosso compromisso com a família doadora”, considera.
O tempo de isquemia (que o órgão fica armazenado em resfriamento) do coração é o mais curto, cerca de quatro horas; do pulmão, seis horas e o do fígado são 12 horas, por isso muitas vezes se faz necessário o transporte aéreo para o fígado também. O ideal é que nenhum deles atinja a quantidade máxima de tempo.
“Esse tempo precisa ser reduzido o quanto possível. Transportar esses órgãos com agilidade tem importância máxima. Quanto mais rápido o tempo entre captação e transplante, melhor a qualidade do órgão e maior a chance de sucesso desse procedimento a curto e longo prazo”, detalha Ida Maria Maximina Fernandes Charpiot, nefrologista da Unidade de Transplante Renal do HB.
Sonhos possíveis
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Diário da Região
O transplante foi a nova chance da vida do técnico em refrigeração Gustavo Carlos Branco, que em maio deste ano passou por um transplante de rim. Por três anos na fila, ele fazia diálise (tratamento que substitui as funções do rim quando o órgão não remove adequadamente resíduos e líquidos) três vezes por semana, por isso não podia viajar, uma vez que tinha um compromisso com a máquina às segundas, quartas e sextas.
O procedimento permite agora que ele possa passear com a esposa, Cristiane, e com os filhos e enteados e fazer uma coisa muito simples: se alimentar e beber água. Para ele, também é vitória ficar longe da máquina de diálise que tanto castigava. “Muda tudo, é outra vida. Posso beber água, que era restrito, e comer normalmente, ainda que uma dieta balanceada”, celebra. (MGB)
Logística que salva vidas
O TransplantAR conclama proprietários de aeronaves privadas, que estão à disposição de seus operadores, para cada um doar um voo por mês, suplementando a logística de captação e transporte de equipes médicas e órgãos para transplante. Muitas vezes, a ação é combinada com duas aeronaves - uma da cidade até São Paulo e do aeroporto até o hospital, por exemplo.
A ação do programa pode ocorrer a qualquer dia, em qualquer hora, em cooperação com hospitais, centrais de transplantes e o SUS. Por meio da ação, empresários (proprietários e operadores de aeronaves particulares) podem doar horas de voo.
A Frigoestrela, de Estrela d'Oeste, é uma dessas voluntárias. A vontade de integrar o programa, diz o fundador do grupo, Etivaldo Vadão Gomes, veio da responsabilidade social da empresa e seu papel como transformadora social. “Salvar vidas é uma das razões mais poderosas para agir. Cada transporte bem-sucedido pode representar a chance real de um paciente continuar vivendo”, afirma Vadão. “Muitas companhias possuem jatos particulares e usar esse privilégio para salvar vidas por meio de um programa como este é transformar um recurso em esperança.”
O primeiro voo solidário feito pela Frigoestrela ocorreu em novembro de 2024. Até o momento, foram um total de seis, percorrendo distâncias até São Paulo, Toledo (PR), Apucarana (PR) e Florianópolis (SC). (MGB)
Corrida aérea contra o tempo
O transporte de órgãos é prioridade no País, mas nem sempre ele pode ser feito. Isso se deve às dimensões continentais do Brasil e ao trânsito conturbado de algumas localidades, acarretando perda de parte dos órgãos.
A Força Aérea Brasileira (FAB) conta com uma aeronave com esta finalidade, mas ela serve a todo o território nacional, por isso nem sempre está disponível quando necessário.
O governo estadual de São Paulo também disponibiliza recursos financeiros para que os hospitais possam fretar voos particulares quando necessário e o Águia, da Polícia Militar, também faz voos quando acionado.
O capitão PM João Sadalla Sfair explica que o acionamento do Águia é feito por meio do contato entre a Central de Transplantes e a Divisão de Medicina de Aviação do Comando de Aviação da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
“Cumprir uma missão de transporte de órgãos é um misto de responsabilidade, urgência e esperança, sendo que esta é a que move toda a equipe, a certeza de que aquela missão está ajudando a dar uma nova chance, uma nova vida para outra pessoa e sua família”, afirma Sadalla.
Além da aviação, o apoio em terra é primordial. São corporações como a Polícia Militar, as polícias rodoviárias e a Guarda Civil Municipal (GCM) que garantem a escolta dos órgãos, quando necessário, para abrir o fluxo do trânsito e garantir que o órgão chegue quanto antes ao aeroporto.
De acordo com o inspetor Flávio Catarucci, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) está retomando este trabalho, que estava paralisado. A retomada se dá por meio de um termo de cooperação técnica entre a corporação e a Secretaria de Estado da Saúde. Ele cita que o transplante é prioridade zero quando se trata de aviação, uma prerrogativa da ANAC. “É a missão de misericórdia, que se sobrepõe a qualquer outra. Quando abre o doador aqui, o receptor já está sendo aberto. É o tempo da aeronave fazer o voo e entregar o órgão para concluir a implantação.” (MGB)